Diretor de TI da filial brasileira reflete sobre a transformação digital das indústrias de alimentos e sobre como a tecnologia vai ajudar na superação da crise do coronavírus
A maior parte da vida profissional do executivo espanhol Xavier Serres se passou na Danone, multinacional do setor alimentício fundada em Barcelona e presente em cerca de 140 países. Na empresa, começou como engenheiro de software, escrevendo códigos, mas aos poucos percebeu que sua vocação era entender não a tecnologia em si, mas sim as reais necessidades das pessoas – habilidade fundamental para promover a inovação.
“A tecnologia sempre acaba em uma dimensão totalmente humana”, disse o executivo em entrevista por videoconferência ao Blog da 2S. Durante os quase 20 anos em que está na Danone, sendo os últimos cinco como diretor de TI da operação brasileira, Serres sempre se interessou em como a tecnologia ajuda as pessoas e os negócios a se transformarem – tema que ganhou ainda mais destaque após o isolamento social imposto pela pandemia do coronavírus.
A pandemia, aliás, é “um dos maiores desafios” da carreira de Serres, que também refletiu sobre o papel da tecnologia da informação na transformação digital no setor de alimentos e na Danone. Para ele, a TI é, mais do que nunca, peça fundamental da estratégia das companhias, mesmo no setor de alimentação, em que os negócios também se tornam digitais – e exigem um engajamento diferenciado com o consumidor e com a cadeia de suprimentos.
Leia a seguir os melhores momentos da entrevista:
Você se formou em tecnologia e atua no setor desde então. Como o uso de TI por parte das empresas mudou ao longo de todos esses anos?
Xavier Serres: Mudou muito. Sou engenheiro de computação. Comecei como desenvolvedor em vários tipos de linguagem nos anos 1990, quando a informática estava passando da “tela verde” para a interface gráfica. Essa já foi uma primeira revolução. Trabalhar com mouse foi outra. Mas o que mais mudou nesse tempo foi a interação entre as pessoas. A tecnologia em si não agrega muito valor, mas sim trazer serviços para as pessoas. Eu trabalhei nessa parte de captação de requisitos dos usuários, e as pessoas me preocupam bastante. Fazer esse meio campo entre o que o usuário quer e o que fazemos.
Sem essa interação entre as pessoas, a tecnologia não traz resultados?
Serres: Quando falamos de capacidade tecnológica, às vezes pensamos que em algum momento a tecnologia vai nos engolir. Prefiro pensar que esse crescimento vai ser sempre limitado, ou ajustado, equalizado, à capacidade humana de absorvê-lo. Colocar a dimensão humana na expansão da tecnologia é fundamental. Ela está aqui para nos ajudar com certas atividades perigosas para humanos, ou que não sejam tão eficientes, mas sempre a nosso serviço. Se pensamos em um mundo do tipo Blade Runner [filme futurista de 1982 dirigido por Ridley Scott, em que humanos e robôs são indistinguíveis], em que as máquinas fazem todo o trabalho e não tem ninguém para confirmá-lo, teremos o quê? Nossa companhia, a Danone, é de alimentos. Se automatizamos tudo, vamos continuar produzindo para humanos, e a tecnologia sempre acaba em uma dimensão totalmente humana.
Falando na Danone, você está na companhia há 18 anos. Como a TI se relaciona com o crescimento da empresa?
Serres: Ela tem evoluído bastante, mas nunca esqueço que estamos em uma companhia de alimentos. A tecnologia é um meio para entregar alimentos. Quando comecei, estávamos iniciando um projeto global de ERP. A companhia está em mais de 140 países, então implementar um template global leva anos. Não dois ou três, mas uma ou duas décadas. Isso até 2013 ou 2014, embora em alguns países ainda continue. Isso fez com que as formas de trabalhar a nível global sejam mais semelhantes, pois usamos a mesma plataforma. E consumiu bastante esforço da área de tecnologia durante esses anos. Mas nos permitiu evoluir muito no uso de analytics, começando com análises básicas de informação, como vendas e e-commerce. A forma como trabalhamos hoje também evoluiu bastante. Nos anos 2000 eram muitos processos manuais, e agora não temos nada que não seja automatizado.
Que outras tecnologias se destacam nessa transformação?
Serres: Aqui no Brasil temos projetos de uso de machine learning para otimizar o atendimento aos clientes. Fazemos provisionamento inteligente [de produtos], com uma proposta individualizada de ofertas por dia, e qual a quantidade ótima que os clientes podem comprar antes que o produto estrague, e em quantidade adequada de acordo com a flutuação da demanda. Também temos três chatbots baseados em inteligência artificial, para as áreas de TI, RH e para consumidores na área de nutrição especializada. Também temos o e-commerce, que nesse momento de confinamento nos deu capacidade de entregar produtos aos consumidores diretamente. A evolução foi muito grande.
O que você, e a Danone, entendem como transformação digital? E como vocês trabalham o tema da inovação?
Serres: Transformação digital é a palavra da vez e serve para quase tudo. Nós da Danone somos bastante humildes, porque ainda não temos um programa estruturado. Estamos identificando oportunidades em que podemos aplicar tecnologia de forma transformadora. Por exemplo, sugerindo pedidos para nossos clientes, o que transforma o jeito como estamos vendendo. Antes de ter algoritmos, os vendedores iam simplesmente empurrando vendas, e agora podem ser mais objetivos. Quando colocamos uma camada tecnológica, conseguimos criar mais subjetividade e ser mais assertivos. Isso é muito relevante, principalmente em laticínios, que tem vida útil curta, e o produto pode estragar se vendermos demais. Estamos pegando algumas oportunidades para que a tecnologia ajude a transformar algumas áreas, ou trazer mais eficiência em outras. Mas há o desafio da mudança cultural. Estamos trabalhando em várias linhas e projetos, mas primeiro teremos de amadurecer um pouco todas essas mudanças para ver como vão transformar a companhia.
Seres humanos sempre precisarão comer, mas como inserir tecnologia nos produtos?
Serres: São duas coisas diferentes. Mesmo se não adotarmos tecnologia em nossos produtos e nossa produção, o cliente está adotando. A partir do momento em que o consumidor adota tecnologia, ele quer interagir conosco baseado nela. Nosso consumidor começa a procurar em nosso site as características de um produto. Ele entra em blogs para entender o que falam sobre nós. Pode, inclusive, procurar em outros países, e cobrar de nós um produto produzido na Argentina feito à base de doce de leite. Esse consumidor já é digital, por isso temos que estar preparados para interagir.
Em que mais a tecnologia ajuda a transformar a indústria de alimentos?
Serres: Ela ajuda a produzir de forma mais segura e eficiente. Estamos nos preparando para implantar internet das coisas (IoT) em nossas fábricas. E iniciando vários projetos para preparar a infraestrutura e ter fábricas mais automatizadas. Mas acho que a tecnologia vai influir muito na forma como vendemos e nos conectamos aos nossos fornecedores. Podemos ter produtos digitais como serviços. Por exemplo, uma assinatura de nutrição especializada, ou um serviço de assinatura digital para que a pessoa que tem problemas de memória receba itens automaticamente em casa. São pacotes com valor agregado e baseados em tecnologia, que livram o indivíduo da pressão de depender da família. Nosso produto base talvez não mude muito, mas podemos criar serviços que passem uma nova proposta de valor.
E qual seu maior desafio profissional atual?
Serres: O coronavírus é um desafio muito importante. Ser uma companhia de alimentos traz uma responsabilidade adicional. Continuamos trabalhando, porque somos uma indústria prioritária, mas ao mesmo tempo temos uma responsabilidade porque se não estivéssemos trabalhando, teríamos uma crise adicional. Atualmente temos mais de duas mil pessoas trabalhando de casa. Minha mensagem para o time nesses meses em que estamos nessa crise é dupla. Nós, como TI, temos a responsabilidade de fazer com que nossos colegas trabalhem seguros de casa. E, ao mesmo tempo, nossa companhia precisa continuar entregando produtos para os consumidores. Mas, para manter nossos colegas trabalhando seguros, tivemos que realizar várias ações e assumir riscos também. Temos que ser honestos. Nunca tínhamos feito isso. Algumas áreas faziam um dia de home office, mas eram 150 pessoas, no máximo. Em três dias tivemos que mandar 2 mil pessoas trabalharem de casa. Ainda tínhamos gente que trabalhava com desktop, e foi preciso habilitar várias centenas de notebooks. Também tivemos que colocar aplicativos de táxi corporativo nos celulares de mais de 2 mil vendedores em um prazo de 24 horas. Estamos trabalhando ainda na camada de e-commerce, para aguentar o aumento da demanda. É um dos maiores desafios da minha carreira.
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