Para especialista, meta é garantir que a transformação digital humanize as relações, nos dando tempo para ser mais analógicos
“Somos a última geração de homo sapiens. Em um século ou dois, os humanos se desenvolverão de forma completamente diferente.”
As palavras do professor de história e escritor israelense Yuval Noah Harari, autor de “Sapiens”, parecem descrever um futuro distante, mas definem o momento presente. A tecnologia está em todos os lugares, ocupando espaços antes inimagináveis. Há um discurso fatalista, em parte emprestado da ficção científica, em parte da nossa realidade, de que tanta inovação está afastando os seres humanos. Mas já existe também, assim como Harari, quem comece a pensar que a tecnologia simplesmente se tornará parte inerente de nós e, portanto, ajudará, sim, a humanizar as relações – mas de um jeito diferente do qual estamos habituados.
Arthur Igreja, professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e especialista em tecnologia e inovação, é um deles. Mas ele acredita que ainda não chegamos a esse ponto de virada, embora estejamos no caminho. “A ascensão da tecnologia da informação, que combina smartphones, internet, mobilidade, mídias sociais, é muito recente. E, de fato, inicialmente ela gera afastamento”, avalia.
A “solidão digital” é real. Um reflexo dela é o fato de que as pessoas passam muito tempo conectadas. Um relatório revelou que o Brasil é o terceiro no ranking de quem fica mais tempo na internet – são nove horas diárias. O país também aparece entre os primeiros quando o assunto é o período gasto nas mídias sociais: são mais de três horas diárias. O estudo foi feito em 2017 pela agência We Are Social e a plataforma Hootsuite. “Quando enaltecemos inovações que humanizam as relações me parece que são casos que estão apontando um caminho de questionamento, do tipo: será que nós já não entramos em uma zona não saudável e agora é hora de recuperar?”, questiona Igreja.
Apesar dos números, ele se coloca entre os que acreditam na inversão da curva ao longo do tempo. Igreja cita como exemplo o fato de que já podemos nos comunicar com pessoas em locais distantes e de difícil acesso, em qualquer horário que quisermos e a um custo acessível para a maioria. Esse grau de interação fica ainda maior com o desenvolvimento das videoconferências, por exemplo – que estão ao alcance de um clique na tela dos celulares. A transformação digital impacta a forma como vivemos, nos relacionamos e trabalhamos, alterando as dinâmicas e criando novos modelos de negócio.
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Nesse ponto, Igreja destaca as potencialidades da inteligência artificial, que, em suas palavras, caminha para ter um superpoder que deve ser visto com cautela. Ao mesmo tempo em que ela é fundamental para alcançar esse futuro no qual teremos mais tempo para ser humanos, ela também gera algoritmos que podem “pilotar” nossa tomada de decisão. Ele cita como exemplo algo que conhecemos bem: o Google. Ao pesquisar qualquer assunto na plataforma, somos direcionados pelo algoritmo. É ele quem define o que devemos ler – ou seja, nosso livre arbítrio já está sendo moldado pela IA.
O mesmo acontece em relação ao humano 2.0, um misto de homem e máquina que o especialista acredita já ser realidade – mesmo que ainda não tenhamos chips subcutâneos que nos permitem acessar a internet sem precisar de qualquer outro hardware. “Pegue como exemplo o fato de que até bem pouco tempo nós decorávamos números de telefone. Hoje eles estão todos armazenados na memória do smartphone. O celular se tornou uma expansão da memória, o equivalente a colocar um chip na cabeça da pessoa para ampliar o espaço de armazenagem de acesso rápido. Nós terceirizamos a memorização para a máquina.”
Para o especialista, a meta a ser buscada é um futuro no qual a tecnologia nos substitua em tarefas mecânicas e burocráticas, para que assim tenhamos mais tempo para ser analógicos, ou seja, “interagir, tocar, conversar”, nas palavras do especialista. “Hoje, a maioria das pessoas está aprisionada em tarefas não inteligentes, e é nisso que a tecnologia pode ajudar. Mais que simplesmente olhar conectividade, redução de distâncias e comunicação, é também perceber que, quando você traz uma solução tecnológica, sobra tempo para ter mais humanização nas relações.”
Trata-se de um efeito que não é tão direto, mas é aquele que tem o maior potencial de transformar a nossa sociedade.
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