Transformação digital, fontes renováveis, cibersegurança, regulação e “open energy” foram pautas da conversa com o presidente da Utilities Telecom & Technology Council America Latina (UTCAL). Acompanhe a entrevista que o especialista concedeu exclusivamente à 2S
Na primeira quinzena de abril, ocorreu o UTCAL Summit 2024, principal evento do mercado de utilities da América Latina. O encontro tratou de temas como transformação digital, impacto do big data nas redes de telecomunicações, definição de requisitos de smart grid, cibersegurança, entre outros aspectos sensíveis da tecnologia aplicada ao setor. Muitos desses assuntos — e ainda outros — também foram pauta da entrevista exclusiva que fizemos com o presidente da Utilities Telecom & Technology Council America Latina (UTCAL), Dymitr Wajsman. Veja a seguir.
Dymitr, como a TI tem contribuído para o ganho de eficiência no setor de energia?
Há aproximadamente 15 anos, o setor começou a se digitalizar fortemente. Estamos falando de transformação digital, que, simplificando, é o uso de tecnologias que geram e transmitem informações que possibilitam, por exemplo, controlar melhor a planta de uma empresa elétrica. Essas tecnologias permitem, ainda, aprimorar todo o processo produtivo e de distribuição. Contudo, para funcionarem bem, exigem sistemas de telecomunicações avançados. O fato é que, a cada dia que passa, esses recursos tecnológicos ficam mais sofisticados e, no setor elétrico, para ser competitivo, não dá mais para abrir mão de inteligência artificial e realidade aumentada, por exemplo.
De que maneira a tecnologia colabora para o setor aderir às fontes renováveis de energia?
Ela é imprescindível. Gosto de chamar as fontes renováveis de fontes interruptíveis, porque, na verdade, uma fonte solar, no período noturno, não gera energia. A eólica, quando pouco venta, gera menos. A tecnologia permite monitorar e gerenciar o funcionamento dessas fontes interruptíveis, o que é fundamental para tornar esses modelos sustentáveis economicamente também. Assim, quando se fala em produção e geração de energia renovável de forma eficiente, está-se falando em transformação digital. Porém, essa transformação não se dá com facilidade, ela traz consigo vários desafios.
Pode citar qual seria o principal desafio?
Ao colocar um equipamento digital numa subestação ou numa usina, ele precisa se comunicar. Se precisa se comunicar, tem de ter um meio de comunicação. Se há um meio de comunicação, há risco de violação do sistema e acesso aos dados. Ou seja, para melhorar o sistema com mais recursos tecnológicos, é preciso investir em cibersegurança, e esse é um dos maiores desafios.
Seguir as normas definidas pelos órgãos reguladores já ajuda a superar esse desafio, não?
Sim. Inclusive, a ANEEL [Agência Nacional de Energia Elétrica] soltou, não faz muito tempo, a regulamentação 964, que trata justamente de segurança cibernética. O Operador Nacional do Sistema Elétrico [ONS] também fez um procedimento operacional com obrigações em segurança cibernética para as empresas elétricas. Hoje, atuamos sob as diretrizes dos reguladores brasileiros, americanos e da União Internacional de Telecomunicações da ONU. Participamos de reuniões em Genebra. A UTCAL fez e segue fazendo sua parte, criou um grupo de melhores práticas de segurança cibernética do setor elétrico brasileiro e temos três manuais na área. A cibersegurança tem toda essa relevância, para o nosso setor, porque trata do abastecimento de energia de um país. E a TI, para nós, é sinônimo de TO, agora com a transformação digital. Um ataque cibernético no setor elétrico tem consequências muito graves. Em resumo, a transformação digital é inevitável, mas traz um pacote de desafios nada trivial.
É possível apontar os sistemas legados como outro grande desafio tecnológico do setor?
Com certeza. Equipamentos legados, que não forem atualizados ou substituídos, prejudicam a eficiência das empresas. A ANEEL trabalha no sentido de estabelecer limites de falhas operacionais por meio de metas que, se não forem alcançadas, resultarão na perda de concessão. Ou seja, para a empresa continuar no mercado, terá de ser cada vez mais eficiente e, para isso, precisa passar pela transformação digital.
Vamos retomar o tema das fontes renováveis? É possível dispor de um sistema baseado apenas nessas fontes de energia?
Energia eólica, solar, à base de hidrogênio e hidrelétricas: há várias fontes limpas e renováveis. No entanto, não se pode abrir mão do que chamamos de operação de reserva girante, que funciona, normalmente, a partir de energia cinética. Quando se fala de um país com mais de 200 milhões de habitantes, com a extensão do Brasil, temos que tomar cuidado com todos os sistemas digitais de inteligência para que esta geração renovável seja segura também em termos de fornecimento, para que se tenha um sistema estável. Ou seja, respondendo à pergunta: não, é preciso um mix de fontes para tornar o sistema elétrico seguro.
Que benefícios empresas e clientes podem obter com a adoção dos tais medidores inteligentes?
O Brasil tem um problemão de perdas técnicas e perdas comerciais. Perdas comerciais é um nome bonito para roubo de energia. Toda vez que se usa medidores eletrônicos, limita-se o roubo de energia e as perdas técnicas. Os medidores eletrônicos, por exemplo, corrigem toda a operação e detectam, numa escala muito detalhada, as possíveis falhas do sistema. Se determinados medidores começam a apontar uma falta de energia, você consegue delimitar onde está a falha. Ele torna mais fácil desligar a conta de clientes inadimplentes e facilita o religamento caso volte a estar adimplente. Ou seja, é benéfica para a empresa de energia, para os clientes, sobretudo para os que usam a rede de forma correta.
No setor bancário, a transformação digital trouxe o open banking. Podemos ter um open energy?
Hoje, existe um mercado livre de energia no Brasil, mas restrito a empresas com determinado limite de consumo. Em alguns países, pratica-se alguns modelos de “livre” comércio de energia. Na Inglaterra, mais de uma empresa pode comercializar energia. Essas “comercializadoras” adquirem energia da geração e “pagam o fio” — essa é a expressão usada — da distribuidora. Em resumo, o sistema funciona da seguinte maneira: a distribuidora recebe energia do gerador e distribui a um comercializador que vende ao cliente. Com isso, tem-se competição na ponta, com vários comercializadores adquirindo a energia de um distribuidor e vendendo. Algo similar ao mercado de telecomunicações: fecha o contrato e se usa, com exclusividade, os serviços de uma comercializadora por um tempo, mas, se não estiver feliz, pode mudar.
Apesar do “open” ou do “livre”, esse modelo também precisa ser regulado, certo?
Sim, e bem regulado, para que a concorrência se dê com regras claras e justas. Pessoalmente, acho que o mercado livre é salutar. No Brasil, porém, exceção a mercados restritos talvez leve um tempo. Um mercado altamente regulado [como o brasileiro] tem tarifa regulada. O mercado livre, não. A abertura é uma questão a ser estudada. Como vai ser na ponta? Se esse cliente for um pequeno consumidor, terá uma tarifa pré-definida em contrato ou será variável? Haverá diferença de tarifa de acordo com o horário de uso? Enfim, há muitas questões a se ponderar. Se houver essa ponderação e se a regulação concorrencial for bem feita, dando-se a devida atenção ao cliente, acho viável, mas não será uma mudança simples nem trivial.
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